►Estudiosos do livro Na Estrada, os escritores Cláudio Willer, Roberto Bicelli e Raul Fiker aprovaram, com ressalvas, a adaptação cinematográfica
Em Na Estrada, filme de Walter Salles que estréia hoje, dia 13, no Brasil, um tipo de cena se repete por toda a obra (calma, não haverá qualquer sinal de spoiler): os amigos Sal e Dean saem sem rumo pelas ruas e, depois de se abastecerem de drogas, desbravam as noites dos anos 40. Na sequência, como um ciclo, tudo se transforma em jazz, sexo e poesia.
Sal, que é nada menos que o alterego de Jack Kerouac (1922 – 1969), escritor do livro que inspirou o longa-metragem, dizia que aquilo era parte de seu projeto literário. Na época com 26 anos e um exemplar de Em Busca do Tempo de Perdido embaixo do braço, ele queria vivenciar diversas e intensas experiências para poder transpô-las no papel. Só assim, sentindo na pele os fatos, afirmava, poderia escrever sobre eles.
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Algo parecido ocorreria com outro grupo em São Paulo, pouco depois, nos anos 60. Roberto Piva, Antonio De Franceschi, Roberto Bicelli e Claudio Willer, chamados mais tarde de “poetas malditos”, ganharam a alcunha por levarem muito a sério essa relação entre experiência pessoal e escrita. Contra os preceitos conservadores da época, invadiam festas, roubavam livros e se envolviam numa série de, digamos assim, loucuras literárias. “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”, dizia Piva, falecido em 2010.
Os brasileiros ficaram conhecidos por continuarem a filosofia iniciada por Kerouac e seus amigos — a chamada geração beat. Esses autores americanos, que viveram entre as décadas de 40 e 60, se caracterizavam pelo estilo anárquico, por lutar pela igualdade étnica e, no campo das artes, pelo pensamento caótico e linguagem informal. Em essência, significaram uma ruptura com os padrões vigentes. Era o início de uma contracultura que daria origem a movimentos como o hippie e o punk, e que, claro, influenciaria a literatura mundial. Inclusive a nossa.
Pela ligação com a obra de Kerouac, convidamos os poetas Willer e Bicelli (De Franceschi não pôde comparecer) para avaliar se a adaptação cinematográfica é fiel ao livro homônimo, considerado, inclusive por eles, uma das obras mais importantes dos anos 40. Compareceu também Raul Fiker, professor da Unesp, estudioso do tema. Confira o que eles falaram.
►Direção aprovada
Willer: “Walter Salles fez bem, principalmente considerando orçamento relativamente baixo — por isso, muitas cenas de interiores, em estúdio, que sai mais barato — mas as externas são bonitas. O filme reproduz a cultura ‘hipster’, entre a boemia e a delinqüência daquele período, virada da década de 1940 para 1950. Nos quesitos ritmo e montagem, impecável.”
Bicelli: “Walter Salles capta bem o espírito da coisa. O filme tem uma fotografia bonita, com os tons terra, o figurino é legal — em cenas de rua, dá pra ver a diferença de estilo entre os beats e os passantes —, a música abrange os vários estilos que conviviam na época, com a evidente preferência deles pelo jazz, mas sem esquecer que Kerouac, por exemplo, gostava de VicDamone.”
Fiker: “No todo, gostei. A ambientação e a reconstituição de época são perfeitas. A música, idem.”
Os atores Sam Riley (Jack Kerouac/ Sal Paradise) e Garrett Hedlund (Dean Moriarty / Neal Cassady)
►Interpretações deixam a desejar
(Antes, um esclarecimento. Todos os personagens, assim como no livro, são heterônimos dos autores. Não usam nomes reais. O escritor Allen Ginsberg, por exemplo, que ficaria famoso anos depois do livro, tem nome de Carlo Marx.)
Willer: “O ator que faz Kerouac / Sal (Sam Riley) não convence. Kerouac foi bem documentado, sabemos como era, carismático, esse do filme achei insosso. O que faz Cassady / Moriarty (Garrett Hedlund), também, pouco ator para muito personagem. E Carlo / Ginsberg (Tom Sturridge) também está estereotipado, não era tão afetado e foi bem mais louco — e carismático. Os outros, ok. Grande Viggo Mortensen (que faz o papel de Old Bull Lee / William Burroughs), o melhor.”
Bicelli: “Os atores até que se viram bem. Kerouac é mais fraco que Moriarty, mas este poderia ser um pouco mais ‘anfetamínico’. Do jeito que está, parece mais um irmão mais velho. Contudo, gostei dele: boa estampa, olhos ‘ilumiloucos’, sorriso manhoso e tinhoso.”
►Detalhes bem acertados
Willer: “Gostei de mostrar o Kerouac leitor de Proust, Céline, Joyce. De fato, levavam o volume de Proust nas viagens. Ele falando em ‘canuk’, dialeto franco-canadense com a mãe, correto, e podia ter mais.”
Bicelli: “As mulheres são gostosas e estão bem.”
►O que faltou
Willer “Faltou sobre a dimensão filosófico-religiosa – Onthe Road é busca por Deus, Kerouac insistia. Declarava-se místico. Tensão entre religiosidade e esbórnia confere interesse adicional.”
Bicelli: “Acho que o culto à velocidade de Cassady / Moriarty não é bem aproveitado. Também não aparece Kerouac se deitando no chão do carro, para escapar do medo que, em certo momento, sentiu a estrada sendo devorada por aquela máquina conduzida de maneira infernal. Seria uma baita cena!”
►Além da tela
Depois da sessão e da entrevista, perguntei a Willer qual era o significado do livro Na Estrada para sua vida, e o que esse filme representa para ele. Na resposta, fez questão de dizer que Kerouac é mais do que as pessoas acham — mais que uma literatura sem muito significado.
►Concluo o longo (perdão!) relato com as palavras dele:
“Nessas 5 décadas, o que houve foi uma descoberta da grandeza literária de Kerouac. Especialmente ao avançar no estudo de gnosticismo e de misticismo e poesia. Li todo o Kerouac e acho que essa gente, críticos formalistas e tal, deveriam ler mais Kerouac antes de despejar opiniões apressadas sobre ele.”
Que o filme sirva, então, para que a obra dos beats seja analisada com maior atenção.
Fonte revistaepoca // eternotwilight
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